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Antonio Petrin

Antonio Aracílio Petrin é conhecido como o ator Antonio Petrin. Ainda menino veio morar no Parque das Nações em Santo André. Estudou na Escola Julio de Mesquita para o curso de desenhista industrial. Preferiu seguir a carreira de ator, estudando na Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD) na ECA-USP. Tornou-se ator profissional e atua em teatro e televisão. Foi professor de teatro no Ginásio Vocacional da Vila Santa Maria entre 1968 e 1969.  Imagem do Depoente
Nome:Antonio Petrin
Nascimento:20/06/1938
Gênero:Masculino
Profissão:Ator
Nacionalidade:Brasil
Naturalidade:Laranjal Paulista (SP)

Transcrição do Depoimento de Antonio Petrin em 05/07/2005
Depoimento de Antônio Aracílio Petrin, 65 anos.

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 05 de julho de 2005.

Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC 

Entrevistadores: Vilma Lemos e Daniela Macedo da Silva.

Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.

 

Pergunta:

Senhor Petrin, diga local de nascimento, família, relacionamento com os pais. Conta um pouquinho do senhor para a gente conhecer.

 

Resposta:

Eu nasci na cidade de Laranjal Paulista, bem próximo daqui do Estado de São Paulo, da capital. Vim para Santo André com 2 anos de vida, os meus pais eram lavradores, então, a crise do café em 1940 era muito grande, meu pai fugiu para a cidade que começava a sua industrialização. Foi um momento de êxodo grande da região cafeeira por causa da guerra, não se vendia muito café, muitos plantadores de café entraram em decadência total e meu pai veio em busca de uma empresa, de uma indústria que pudesse dar trabalho a ele, e a gente acabou vindo para Santo André. Eu tenho mais um irmão que nasceu praticamente no período da viagem e aí ficamos em Santo André durante muitos anos.

 

Pergunta:

Como foi a infância, as brincadeiras, lazer, escola?

 

Resposta:

Eu devo dizer que a infância era muito rica, mas muito pobre. Eu morava em um bairro aqui de Santo André chamado Parque das Nações, que na época nem luz elétrica tinha. Esse período foi um período bastante difícil porque era uma adaptação dos meus pais para esse lugar industrial. Meu pai logo arrumou um emprego evidentemente, a gente morava em uma casinha de aluguel, eram ruas sem asfalto, sem luz elétrica e aquela vida muito simples, mas muito rica nas relações humanas, porque as pessoas se davam muito bem, se ajudavam muito, a vizinhança, não havia violência, e nesse bairro nós continuamos praticamente. Meus pais ficaram até a morte nesse mesmo lugar, nessa mesma rua. A diversão da gente na verdade era muito precária. Como não tinha luz elétrica, então a gente tentava, brincava na rua, até que os padres italianos que eram da ordem franciscana se estabeleceram no bairro e deram grande impulso para atrair o maior número possível de pessoas para a igreja evidentemente. Então eles trouxeram grandes novidades em termos de lazer, tipos de jogos de salão, essas brincadeiras, eles promoviam pequenas exibições de cinema, cinema mudo. Era precário, mas tinha o cinema, e eles começaram a fazer também teatrinho, depois eles mesmos começaram a construir uma igreja, perto dessa onde eles se estabeleceram, igreja essa em que eu cheguei até a ser coroinha. A diversão da gente era muito grande dentro da igreja, a atração maior era a igreja. O bairro inteiro era em volta da igreja e desses padres italianos que tinham uma preocupação em dar lazer, diversão e um lazer e uma diversão bastante rica em ensinamentos, essa coisa toda, e acabou traçando um caráter naquelas pessoas assim como eu.

 

Pergunta:

E isso se prolongou até a adolescência?

 

Resposta:

Sim. O bairro, a partir daí, evidentemente começa a criar uma vida melhor, começa a se desenvolver, as empresas, as indústrias começam a se estabelecer em maior número em toda a região, quer dizer, mais pessoas começam, mais famílias começam a chegar. A partir de um determinado momento passa a ter a luz elétrica, que nessa época não existia, mas o bairro começou a progredir, começa a vir luz elétrica, enfim tudo começa, a igreja que os padres começam a construir já ganha uma dimensão maior, a gente já começa a entender um pouco melhor a vida através desses padres que ali se aportaram. A maior diversão que a gente tinha na verdade no bairro era jogar futebol, tinha campos à vontade. Hoje parece que a maior dificuldade da garotada é encontrar um campo de futebol para jogar, então isso é o processo da industrialização que vai tomando conta. Enfim essa era a minha infância até a adolescência.

 

Pergunta:

Década de 50?

 

Resposta:

Na verdade, eu chego em 1940, com 2 anos, quer dizer que em 1950 eu já tinha 12 anos. Eu nunca me esqueço, porque ainda em 1950 não tinha luz elétrica no meu bairro, na minha rua. No outro lado do bairro já tinha e eu tinha um tio que morava nesse outro lugar e ele tinha luz elétrica. Eu me lembro que eu e meu pai fomos na casa desse meu tio, nós acabamos nos encontrando no meio do caminho e uma coisa impressionante, uma coisa que nunca mais eu esqueci, que foi ele dando a informação de que o Brasil tinha perdido a Copa do Mundo de 1950. Essa notícia chegou entre a minha casa e a casa do meu tio, na metade do caminho a gente ouviu essa notícia. Então, imaginar que você não tinha uma luz elétrica e que havia uma Copa do Mundo acontecendo, e que a gente acabou perdendo essa Copa e a gente ficou sabendo, então quer dizer, isso é um fato bastante interessante, mas eu acho que ainda demorou mais uns cinco anos, aí é que chegou a luz elétrica.

 

Pergunta:

Descreva um pouco mais a configuração do bairro, as transformações.

 

Resposta:

O Parque das Nações é um bairro que foi dividido em duas partes: a primeira, mais antiga, que a gente era considerado para lá da linha, que tinha a cidade de Santo André, tinha uma estrada de ferro que ainda tem e esse bairro era depois dessa linha, depois do lugar nobre da cidade era um bairro que seria hoje um lugar bastante ermo, não tinha luz elétrica, só que desse bairro para cá da linha já tinha uma parte mais antiga. Nós estávamos morando na parte mais nova, que era o início de começar a arruar. Eu me lembro que os donos das terras chamavam-se Peruche, eu me lembro ainda hoje, quando eu saía de casa com uma caderneta vermelha para pagar a mensalidade do terreno que meu pai tinha comprado dessa empresa chamada Peruche, quer dizer, ele tinha uma casinha perto de onde eu morava, eu ia lá todo mês fazer aquele pagamento, foi o primeiro terreno que meu pai comprou, depois ele construiu uma casinha e ali ele morou o resto da vida dele, na rua Honduras, no Parque das Nações. Esse lugar tinha um bosque maravilhoso que era onde a gente fazia brincadeiras, se divertia nesse bosque. Eu me lembro que quando eu fiquei doente, eu peguei bronquite e o médico falava para mim: Você tem que todo dia de manhã passear no bosque, porque no bosque, com o ar puro, você vai melhorar. E de fato eu fazia isso diariamente, eu ia ao bosque passear para poder curar da minha bronquite.

 

Pergunta:

Vamos falar um pouquinho de casamento, namoro.

 

Resposta:

Na verdade, tudo, como eu disse, girava em torno da igreja e evidentemente eu acabei conhecendo a minha mulher nesse lugar. Ela era Filha de Maria e eu ficava atrás das Filhas de Maria, uma era mais bonita que a outra, então nós todos ficávamos disputando com qual a gente ia namorar, e confesso que às vezes saía até briga por causa de algumas delas. Eu acabei namorando uma dessas Filhas de Maria com quem acabei me casando e também eu comecei a fazer um teatrinho amador dentro da igreja com ela. Eu conheci a minha mulher fazendo teatro amador da igreja ali no salão paroquial, tinha um teatrinho ali e a gente começou a ensaiar os primeiros passos. Eu gostava muito, já tinha tido uma experiência fazendo uma peça, eu ainda era nem adolescente, eu estava fazendo uma pecinha lá com a que dava aula de catecismo para a gente, então já tinha começado. Eu tinha um grande entusiasmo, e tinha jeito para aquilo, só que não era uma coisa contínua. A gente saía, ia para o futebol, depois voltava para o teatro da igreja, enfim, uma série de coisas que a gente fazia paralelamente, não havia uma preocupação: eu vou ser isso. A preocupação da gente, na época profissional, era querer ser mecânico de carro, mecânico, torneiro mecânico. Meu pai queria que eu fosse torneiro mecânico porque era a profissão que você podia ser empregado, que você podia sair da escola e entrar logo, ter um emprego, não era uma coisa, eu não tinha outra preocupação nem imaginava freqüentar uma universidade, uma faculdade, não. Isso era um sonho impossível, primeiro que na região absolutamente não tinha nenhuma e a distância para ir a São Paulo era infernal, era através do trem. Tinha que ser torneiro mecânico ou qualquer coisa ligada às empresas e indústrias da cidade, então a gente ia estudar. Eu inclusive estudei na Escola Industrial Júlio de Mesquita que na época dava aulas técnicas só que eu comecei a ter aptidões por desenho e acabei me tornando um profissional de desenho. Então, eu já tinha dentro de mim uma preocupação mais artística enfim, eu acabei me tornando um profissional de desenho e não fui o torneiro mecânico que meu pai queria que eu fosse. É evidente que no início, com 13 anos de idade, eu trabalhava em serralheria, ficava cortando ferro, fazendo janela enfim. Era um serviço duríssimo e eu odiava tudo aquilo. Na verdade, eu queria outra coisa para mim, para a minha vida. Mas como você pode querer ser outra coisa em um bairro pobre, absolutamente industrial, sem nenhuma perspectiva, sem você ter nenhuma formação, porque não tinha luz elétrica, então o rádio era quase que uma coisa difícil de você ter, um ou outro tinha aqueles rádios de pilha que mal funcionavam. Aliás eu sou um ator hoje, eu fico sempre me perguntando: Como me tornei ator, com esse tipo de formação? Hoje não, hoje o jovem tem meios de comunicação muito fáceis, a televisão, o rádio, a internet, a computação, enfim, ele está sempre sendo informado, as escolas brotam em cada esquina hoje, porque a escola virou um grande comércio. Hoje, além de uma preocupação de ensino, ela virou um grande comércio, então hoje tem escola para tudo quanto é tipo de coisa. Hoje é mais simples: eu quero ser ator, então o cara já vai, agora na minha época isso era uma coisa que não passava pela minha cabeça. Quando eu me tornei ator profissional foi um problema na família, foi um alvoroço. Como eu sendo um desenhista já muito bom, ganhava muitíssimo bem, de repente eu paro e me aventuro em uma outra profissão? Mas é porque já vinha isso da minha infância daquele teatrinho que tinha na igreja, aquele acompanhamento, depois as peças sacras que a gente fazia, começava a fazer aquelas pecinhas de situação, coisas que a gente ia aprendendo da simplicidade e vendo muitos outros teatrinhos que se fazia, que vinha de São Paulo para lá, foi isso que me alertou. Essa é, mais ou menos, a minha vida na cidade.

 

Pergunta:

Vamos explorar então a questão do amor ao teatro. Como criou esse pulo, como era o desenhista na profissão e como que ele pulou para o teatro? Vamos esmiuçar isso aí.

 

Resposta:

Então vamos voltar novamente a Santo André. Santo André então tem a estrada de ferro que divide a cidade, eu morava desse lado aqui, dificilmente na minha adolescência, para vocês verem o grau de dificuldade, eu tinha até dificuldade para passar para o outro lado da cidade, quer dizer, ir para o centro da cidade era somente para as pessoas adultas, para as pessoas que iam trabalhar. A gente não tinha essa facilidade de locomoção. Então, passei toda a minha infância e grande parte da minha adolescência dentro desse bairro. E ali eu peguei a coisa do teatro dentro da igreja. Quando já estava bem adulto, 18 anos de idade, eu já tinha uma prática maior desse teatro que se fazia dentro da igreja, eu me lembro que então se começaram a fazer teatro no centro de Santo André, que era o Teatro de Alumínio. Esse Teatro de Alumínio era dirigido pelo senhor Antônio Chiarelli e uma vez eu vim assistir ao espetáculo, que foi a primeira vez que eu vi Cacilda Becker representar. A peça chamava-se "Moeda corrente do país". Quando assisti àquele espetáculo no Teatro de Alumínio eu falei: É isso que eu quero ser. Eu me apaixonei por aquilo, eu me via no palco fazendo aquela peça junto. Eu não tinha dimensão de quem era Cacilda Becker, eu sabia que aquilo era um teatro maravilhoso e que era aquilo que eu queria. Passando mais um tempo, foi montado um espetáculo em que eles precisavam de outros atores, então eles abriram um teste para vários atores, amadores evidentemente, para fazer um teste para montar um espetáculo, e eu simplesmente fui lá, cara-de-pau. Antes, tem um dado muito interessante que também se criou: começou uma rádio em Santo André, chamada Rádio Clube de Santo André, nunca me esqueço, ZYR73 Rádio Clube de Santo André. Eles fizeram lá um concurso para locutores, e eu achava que também podia ser locutor. Por que não? Tudo que podia ser de comunicação eu achava que podia fazer. Essa rádio se estabeleceu na Rua Coronel Oliveira Lima, era um prediozinho, uma escadaria, e eu cheguei lá para me inscrever para o teste. Eu sei que tinha assim de gente, eu preenchi a ficha e nunca fui chamado para nada, e essa é minha grande frustração, que nunca fui um locutor de rádio. Mas aí teve esse teste no Teatro de Alumínio, com o diretor chamado Ademar Guerra, aí eu fui fazer esse teste e acabei, eu e a minha mulher, acabamos entrando para esse elenco da SCASA. Claro que eu me sentia como se eu estivesse ingressando na Broadway, tal era o nível que já estava estabelecendo para mim, mas eu era um trabalhador já, eu trabalhava na indústria, como desenhista, então eu tinha as minhas dificuldades. Mas enfim acabei sendo contratado. Eu falo como se fosse hoje, convidado para fazer parte daquele elenco. Depois, terminada essa peça, um ano depois, que foi um sucesso extraordinário, uma coisa fora do comum o sucesso que foi essa peça, o diretor, que era um diretor profissional de São Paulo, nos aconselhou a entrar para a Escola de Arte Dramática. Então, eu fui para a Escola de Arte Dramática, eu já como desenhista formado, já trabalhando, ganhando meu salário, muito bem de vida, um belíssimo salário, acabei entrando para a escola de arte dramática. Depois de três ou quatro anos de Escola de Arte Dramática, era impossível continuar a ser desenhista, ter aquela profissão, porque o mundo se abriu à minha frente, então eu queria ser um outro profissional, eu queria ser ator. Eu fiquei quatro anos dentro de uma escola, aí eu achava que eu estava pronto para ser um ator, e aí acabei virando ator por causa disso. Tive pequenas influências e acabei, um garoto do Parque das Nações, de Santo André, virei ator, coisa que depois, acho que o percentual, eu acho que sou um do Parque das Nações que virou ator. Eu tenho agora um sobrinho, que também nasceu no Parque das Nações, mas que hoje está nos Estados Unidos e lá provavelmente vá fazer uma carreira de ator. Mas são coisas que a vida não mostra claramente lá na frente o que vai acontecer com você. Eu faço uma peça agora que diz uma frase maravilhosa: Nunca se dê por concluída a própria existência antes do último suspiro. Quer dizer, não importa o tempo que você tem, se você é novo, se você tem meia-idade ou se você é um velho, tudo na vida pode te acontecer, só não vai acontecer nunca mais nada quando você der o último suspiro. Até então, a vida pode ser transformada, pode ser mudada. Eu sou o maior exemplo, e tenho isso como uma certeza absoluta, e até gosto de dizer isso e deixar gravado isso, porque é muito importante que as pessoas tenham sempre isso na cabeça, nunca dê por concluída a própria existência antes do último suspiro

 

Pergunta:

E a relação familiar quando da entrada para o teatro: é isto mesmo que eu quero, eu vou lutar por isso. Como foi?

 

Resposta:

Na época eu já estava casado, casei muito jovem, que era também um pouco o costume da época, porque, na verdade, a gente vivia tão precariamente tudo, que a gente se juntava, porque dois iriam conseguir viver melhor, e de fato para mim aconteceu assim. Eu me casei e a minha vida dali para frente, ganhou uma nova dimensão. Eu e minha mulher sempre trabalhamos muito, agitamos muito, enfim, foi bom, não tenho essa de me casei muito cedo, não tem essa mágoa de ter casado cedo, pelo contrário, para mim foi ótimo. Quando eu terminei a Escola de Arte Dramática, eu era um profissional de desenho e eu me lembro, quando foi o meu último dia, das coincidências da vida. Eu estava fazendo, na área, na cadeira de história do teatro brasileiro com o professor Sábato Magaldi, um estudo muito grande sobre o autor Jorge Andrade. Eu estou dando todos esses detalhes para explicar o que vai acontecer. Esse autor Jorge Andrade era um autor cuja temática mais forte dele era tudo aquilo que se relacionava à lavoura. Ele gostava, ele colocava em cena, toda a temática dele era rural, e eu, claro, por afinidade familiar, adorava as peças dele e então eu estudei durante todo o semestre que era o último da escola, estudei com muita profundidade a obra de Jorge Andrade. No final do ano, o Sábato Magaldi, para concluir o trabalho, me convidou para ser o advogado do diabo da sua obra em um grande debate que iria haver sobre todo o trabalho do Jorge, mas eu argumentei: Mas eu conheço tão bem a obra, admiro tanto a obra e você me coloca como advogado do diabo? Ele falou: Exatamente por isso, porque você conhece bem a obra e então você vai ter como contestar coisas da obra dele. E assim foi feito, só que no dia dessa grande apresentação desse trabalho, estava presente o Jorge Andrade, e ficou meio difícil você contestar, ainda mais com ele presente, mas enfim, eu tinha que cumprir o papel que me foi designado pelo professor. Foi uma noite brilhante porque se discutiu muito sobre a obra dele, todos ficaram maravilhados com os trabalhos apresentados, porque era um trabalho todo teórico, não tinha nada prático. Quando terminou esta aula, era minha última aula na escola, nunca mais na parte teórica eu iria voltar para aquela sala, eu me lembro que eu peguei o meu material, estou saindo, ouço a voz do Jorge Andrade, ele tinha uma voz grave: Petrin, por favor. Eu parei, e falei: Ai meu Deus! Agora ele vai querer colocar em discussão pontos que eu levantei da obra dele. Ele me chamou e falou assim: Olha, queria te agradecer pelo trabalho que vocês tiveram com a minha obra e queria te fazer um convite. Eu sou supervisor da área de teatro da Escola Vocacional e queria convidar você a dar aula no Vocacional, de teatro. Eu fiquei perplexo diante desse convite, e falei: Olha, você vai me desculpar mais eu nunca dei aula na minha vida, eu não tenho a mínima idéia do que é juntar adolescentes na minha frente e eu dar aula de teatro, de um curso que estou terminando agora. Não se preocupe com isso, que nós faremos um trabalho preparatório para você durante três meses e aí você passa a ser um dos professores da área. Está bom, então. Ele falou: Toma aqui meu telefone, você me liga que nós vamos detalhar melhor esse convite. Eu saí muito feliz porque eu acabei tendo um convite de trabalho, apesar de eu ser um desenhista e não tinha nenhuma intenção de ser um ator profissional. Eu era desenhista e tinha me formado na escola, claro que a vontade era querer ser ator, mas eu imaginava a dificuldade que eu iria ter para poder ter uma carreira. Esse convite mexeu comigo, aí fui investigar melhor e eu acabei descobrindo que o que eles me pagariam na Escola Vocacional era maior que o meu salário de desenhista, porque lá, como professor, você chegava às oito horas da manhã e saía às cinco horas da tarde porque era período integral na escola, tanto para os alunos como para os professores. Quer dizer, era um sistema de ensino que estava se abrindo na época aqui em São Paulo, que era a proposta de ensino que o governo tentava colocar. Aí, diante de salários iguais, eu acabei aceitando, mesmo porque eu não suportava mais a idéia de ser um desenhista mecânico. Quando eu me tornei esse, eu fui para a escola, até a escola da qual eu fui designado foi uma unidade aqui em São Caetano, que foi aqui na Vila Santa Maria, que começou essa unidade da Escola Vocacional. Só que nós vivíamos em um período político muito grande em 1970, 69. Eu me formei em 67, em 68 a ditadura se estabeleceu. Depois de vários conflitos, os professores da Escola Vocacional lideraram movimentos em favor de professores e alunos para melhoria de ensino e essa coisa toda, o governo considerou o Vocacional um antro de comunistas, e acabou com o Vocacional. Quer dizer, eu que fui empregado durante seis meses, no final do ano me vi sem emprego, porque eles extinguiram o Vocacional e como nós não éramos professores concursados, nós éramos contratados pela CLT, acabamos sem emprego, e ficamos no olho da rua. E aí eu não tinha outra saída a não ser fazer teatro, me colocar como ator. Por um acaso estava ensaiando uma peça no teatro profissional, quer dizer, terminavam as minhas aulas, e eu ia para o meu ensaio que era um espetáculo que eu estava fazendo no Teatro de Arena, em São Paulo, e aí eu cheguei para a minha mulher e falei: Olha é o seguinte: você segura a barra durante um tempo, eu dou um prazo de um ano, se eu conseguir no prazo de um ano fazer minha carreira, muito que bem, senão eu paro e volto a desenhar. Ela falou: Pode ir que eu seguro. A minha mãe, quando ouviu isso, que era nossa vizinha, xingou minha mulher de maluca, eu mais ainda, porque era uma aventura você querer ser um ator profissional depois de você já estar com sua carreira já bem adiantada. Então, foi isso que aconteceu, e graças a minha mulher que segurou o período todo, eu acabei vingando, vamos dizer assim, como ator, uma carreira que ainda é muito difícil, muito complicada, apesar de ser uma carreira muito bonita

 

Pergunta:

O senhor falou um pouquinho nessa questão da ditadura em relação ao teatro. Conta para a gente de lembranças, de reflexos diretos da ditadura, dos movimentos políticos, em relação a atores, teatro?

 

Resposta:

Eu vou ficar até amanhã cedo falando aqui, porque esse é um período tenebroso e terrível que eu não gostaria que ninguém mais passasse por um período desse, era um período onde os atores transformaram nosso teatro numa trincheira em favor da democracia e da liberdade de expressão. Para nós atores o que restou foi uma..., o que veio foi uma censura diabólica sobre o nosso trabalho, e a gente ficava lutando e tentando enganar a censura com as nossas peças. O teatro começa a mudar um pouco de fisionomia, ele passa a ser o teatro da metáfora para tentar ludibriar, para a gente tentar colocar em cena os nossos textos e os nossos espetáculos e ainda fazendo uma dura crítica ao governo que estava ali oprimindo toda a sociedade brasileira. Claro que não era só a censura. A gente saía a campo para protestar contra uma série de iniciativas desse governo. A gente saía em passeatas, nós fazíamos protestos nas praças, isso tudo sempre era comandado, na maioria das vezes por atores e pelos estudantes; nós vivíamos juntos, tanto é que na época o teatro vivia lotado com os estudantes, os estudantes eram os nossos melhores espectadores, eles iam, eles eram o nosso grande público, e a gente tentava. Eu me lembro de um detalhe que eu quero ainda deixar claro aqui, é que na época que eu me formei na Escola de Arte Dramática e durante o período que lecionei no Vocacional, aqui em Santo André, eu e mais alguns colegas da escola de arte dramática, mais uma professora chamada Heleny Guariba, que foi assassinada pelo regime militar, dentro da escola ela era uma professora que tinha acabado de chegar da França, ela tinha estagiado e ela queria colocar umas idéias de transformar a cidade de Santo André em um teatro da periferia, um teatro distanciado do grande centro, um teatro popular onde ela pudesse, dentro de um repertório, trazer para este teatro um maior número de pessoas que tinham dificuldade de ir ao grande centro. Juntamente com ela e mais outros colegas nós fundamos o Grupo de Teatro da Cidade, o GTC que durante 12 anos trabalhou na região de Santo André com muito sucesso e com muito empenho, fazendo um teatro popular de primeiríssima qualidade. E isso também acabou coincidindo com a construção do Teatro Municipal de Santo André. O Teatro de Alumínio foi derrubado, acabou, então se construiu o complexo do Paço Municipal, onde tem um teatro maravilhoso. Juntamente com os colegas nós montamos esse grupo e trabalhamos durante 12 anos, sendo os dois primeiros anos com a Heleny Guariba, depois ela acabou desaparecendo e nós também tivemos problemas com a ditadura, porque a gente também sofreu algumas perseguições, fomos presos em uma oportunidade no DOPS, por causa dela, que tinha uma relação muito grande com alguns grupos da guerrilha, até que ela acabou desaparecendo e depois a gente ficou sabendo que ela tinha sido assassinada pela ditadura. E nós continuamos esse trabalho que ela tinha proposto. Um grupo quando se junta tem a duração de sete a dez anos, esse é o tempo que o grupo consegue se manter unido no trabalho. E o grupo acabou por si só e cada um seguiu a sua carreira individual que é o meu caso atual. Então, tudo isso são momentos que estão saindo de dentro do meu sentimento e colocando tudo isso sem uma ordem muito clara, e às vezes um pouco com a emoção atrapalhando um pouco.

 

Pergunta:

Voltando ao Teatro de Alumínio, vocês tinham dificuldades quanto à montagem de cenário, figurino? Como era?

 

Resposta:

Isso que é. Esse momento de você trabalhar no teatro amador é muito legal porque você aprende de tudo. Por exemplo, como é a peça, que época é, se é uma peça atual cada um traz o seu terninho, o seu paletó, a sua camisa, a sua gravata, o seu sapato, cada um compõe o seu figurino sem nenhuma preocupação às vezes estética, é o que tem. Se for uma peça de época é claro que cada um do grupo acaba contribuindo com um dinheirinho e cria-se uma roupa de época e tal, mas na verdade a gente fazia peças atuais para não ter esse tipo de problema. O cenário era sempre o mesmo, aquele famoso gabinete que a gente ia lá e até pintava, a gente trabalhava na pintura, na iluminação. Eu me lembro que nesse teatro amador eu aprendi a fazer com que a luz pudesse acender lentamente e apagar lentamente, então eu aprendi essa técnica, que é um tubo refratário que você enche de água em uma extremidade, você coloca um pólo da luz e no outro pólo que vai com um peso que vai se aproximando um do outro, quer dizer, isso você faz, e essa água que tem aí dentro é salgada para criar uma corrente elétrica, quer dizer, a aproximação dos dois pólos você faz com que o refletor se acenda. Aprendi isso, e isso me quebrou muitos galhos. Mesmo no teatro profissional, quando se tinha dificuldade de você ter essa técnica mais apurada, a gente acabava usando essa técnica que eu aprendi no teatro. Então o teatro para mim, com o teatro amador, a caixa de um palco, como a gente chama não tem segredos, eu conheço tudo por causa dessa minha formação. Às vezes eu vejo atores que acabam de se formar chegando, eles têm uma dificuldade de entender um pouco como é uma caixa de teatro, então a gente está sempre explicando, porque eu também aprendi com os outros. Esse fazer do teatro, eu sou da época que a gente pegava o texto e copiava a fala da gente, e só a última linha, a deixa do outro, hoje isso é uma coisa impossível. Eu sou da época, ainda bem no princípio, que tinha o ponto que soprava as falas que você tinha que dizer. Mas isso a gente logo acabou abolindo porque é impossível você representar com alguém soprando a fala que você tem que dizer.

 

Pergunta:

Para falar do teatro hoje, como é a vida profissional hoje, a vida em si hoje?

 

Resposta:

Alguns dizem assim: Você já é um ator consagrado. Mas eu acho que não exista essa coisa de falar assim: Eu sou um ator consagrado. Na verdade a batalha da gente no teatro, em um país como o nosso, onde todas as dificuldades culturais são cada vez maiores, nunca estamos assim tranqüilos. Estamos sempre esperando um convite da televisão, um convite para você fazer uma peça de teatro. Temos sempre uma dificuldade na continuidade do nosso trabalho. No caso, eu sou um ator que, na minha inquietação, eu nunca parei, então, hoje eu não espero ninguém, eu vou, eu mesmo produzo as minhas peças. Eu faço o teatro que eu quero fazer, eu falo do tema que eu quero fazer, eu tenho muita dificuldade em aceitar convites para fazer teatro, porque às vezes não é o tema que eu quero fazer, e teatro é uma atividade tão difícil, te dá muito trabalho, que se você não estiver feliz com aquilo que você vai representar, então é melhor não fazer, é melhor ficar em casa, vai fazer outra coisa. Mas o teatro tem que ser uma coisa que te dá muito prazer, porque a atividade, o dia-a-dia do teatro é complicado. A televisão, como você não tem nenhum domínio sobre a produção da televisão, quando eles te convidam para você fazer algumas bobagens que a gente costuma fazer na televisão, então você vai lá, ganha um bom dinheiro, você fica conhecido, todo mundo te pede autógrafo, aponta você na rua, só que isso é bom para a garotada. Eu sou um pouco isento dessas coisas. É claro que o ego sempre fala um pouco, é bom você ser convidado para dar uma entrevista, para pedir um autógrafo, quer dizer, é claro, isso faz parte, para mim, na minha idade, eu não tenho mais muito isso, isso não me entusiasma tanto. O que me entusiasma ainda hoje é ser um ator que ainda posso escolher outros personagens maravilhosos que eu quero fazer. Eu atualmente estou fazendo uma peça que se chama Um Merlin, que é uma peça maravilhosa, onde eu falo coisas nessa peça que me entusiasmam e espero que sempre eu estusiasme o público quando eu estiver representando, porque pega um personagem da literatura, um ícone que é o Merlin, transforma, passa para o dia de hoje, toda uma linguagem necessária para a gente ouvir, para a gente escutar, para a gente discutir, e fazer o personagem, a coisa mais enriquecedora para o autor é fazer personagens. Com a soma dos personagens que você faz ao longo da sua vida com cada um deles você aprende as relações humanas, você aprende com o canalha, com o carrasco, você aprende com o homem bom, você aprende com temas que às vezes a televisão não deve, não pode tratar, o teatro é que pode, então você aprende todos eles. Além do aprendizado que a gente tenta passar para o público, essa reflexão sobre as relações humanas antes de tudo é o ator que ganha, que conquista tudo isso. Eu me sinto privilegiado com tudo isso na minha vida, dentro da sociedade, que eu tenho uma formação que eu adquiri ao longo da minha vida e muito mesmo através dos personagens que eu fiz no teatro. Isso para mim é um bem que eu jamais saberia, adquiriria se não tivesse o teatro. Eu gostaria, seria um sonho que todos pudessem ter alguma experiência de teatro, para ver o quanto isso é gratificante. Como eu gostaria que os estudantes, a quantidade de estudantes que tem hoje, fossem mais ao teatro e aprendessem com o teatro muito mais, com certeza absoluta, do que aprendem em uma sala de aula. Digo isso com toda clareza, com toda prova de que isso é verdade. Eu acho que o teatro perde muito com a ausência dos estudantes na sala. A alegação de que o teatro é caro não convence porque a gente encontra tudo quanto é jeito, forma de ir ao teatro. Na minha época, na época da ditadura, os estudantes iam, em peso; tem um amigo meu que diz assim: Na segunda-feira se você não tivesse assistido a determinada peça, você não teria assunto dentro da escola para conversar, porque todos foram ao teatro durante o fim de semana. Enfim, se você não tivesse ido, você ficava sem assunto na sala de aula. Hoje ninguém, estudante nenhum vai ao teatro. É muito pouco. As pessoas vão para a balada, as pessoas vão à procura de uma coisa, de uma necessidade de uma vida que, às vezes, talvez decepcionado com a sociedade que está aí, mas se abandonarmos, não conseguiremos retomar uma melhoria na nossa vida. O Brasil precisa dessa melhora de qualidade do estudante, e o estudante não pode querer que apenas a escola lhe dê a formação necessária, ele tem que procurar outros meios, assim como tem a internet, como tem o cinema, tem que procurar o teatro. O teatro ainda é o lugar, o espaço necessário para a nossa formação.

 

Pergunta:

Vive-se de teatro?

 

Resposta:

Eu vivi, e olha que eu tenho dois filhos, nunca tive outra profissão durante, desde o momento que deixei de ser desenhista, os meus filhos eram pequenininhos, cresceram, dei a melhor escola para eles, hoje eu tenho um filho que mora na Dinamarca, é arquiteto, pós-graduado, tenho uma filha formada em Letras, muito bem. Eu consegui fazer com que os meus filhos tivessem a melhor escola, a melhor formação, cada um que se casou, eu dei um apartamento. Tudo isso. Quer dizer, a alegação de que o teatro... O teatro, você precisa trabalhar, trabalhar e se você tiver talento, se você tiver vocação, você consegue. Então, é também uma outra coisa, a gente não consegue, mas hoje se consegue muito mais, porque hoje tem a televisão que dá muito emprego. Hoje eu moro em um lugar ótimo, moro em um lugar legal, tenho meu belíssimo apartamento, o resto da minha vida eu acho que vou estar tranqüilo. Claro, mas eu sempre estou inquieto com a minha profissão eu quero sempre fazer mais, até o dia que a minha memória não conseguir mais memorizar os textos, aí é outro problema, mas enquanto isso, enquanto tiver com a minha saúde, com a minha memória podendo exercitá-la, eu quero estar no teatro, porque esse é o meu espaço. O ator. Para terminar, a formação do ator é para o teatro, ele, o seu espaço-rei é o teatro, é o palco. Ele depois presta serviço para o cinema, presta serviço para a televisão. É uma bobagem muito grande dizer: Eu vou fazer um curso de ator para televisão. Isso é uma asneira absoluta, ninguém se prepara para ser ator para televisão ou para o cinema, se prepara para ser ator e aí você vai aprender a representar com muita facilidade, dois dias em frente a uma câmera, você aprende a representar para a câmera, um outro dia para o cinema você aprende, agora a grande dificuldade é representar no palco, onde o espaço é maior, onde a voz tem que ser maior, enfim, você usa todo o seu corpo, então a formação de um ator é para o teatro.

 

Pergunta:

Para finalizar, o que o senhor gostaria de deixar registrado, com o seu depoimento, para os jovens e futuras gerações sobre a sua experiência de vida?

 

Resposta:

Esses tipos de conselho sempre soam de uma forma às vezes meio demagógica. Eu acho que eu não tenho uma fórmula, ninguém tem a fórmula: você jovem tem que fazer isso, tem que fazer aquilo. Eu acho que a única fórmula que o jovem tem que seguir é perseguir o seu sonho. Qual é o meu sonho? O meu sonho é ser um arquiteto, então ir atrás do sonho. É acreditar no sonho, acreditar completamente no sonho, até esse sonho ser realizado. O ser humano só não deve perder a possibilidade de sonhar. Se ele sonha, ele vai ser um homem feliz, ele vai encontrar o seu caminho e para isso não tem uma receita. Se tivesse uma receita, a gente escreveria um livrinho e venderia e ganharia muito dinheiro com essa receita, mas eu acho que a melhor receita é seguir o seu sonho.


Transcrição do depoimento de Antonio Petrin concedido em 22/09/2015

Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS)

Estúdio do Laboratório Hipermídias - USCS 

Ginásio Vocacional da Vila Santa Maria

Depoimento de Antônio Petrin, 77 anos de idade

São Caetano do Sul, 15 de setembro de 2015.

Pesquisadora: Maria Aparecida de Carvalho.

Equipe técnica: João Paulo Soares (monitor técnico)

Transcritora: Helena da Silva Rocha

 

Pergunta:

Como que foi a sua entrada no Vocacional?

Resposta:

Bom, como eu nunca imaginei que eu seria ator, muito menos professor e, as coisas da vida fizeram com que acontecessem as duas coisas, eu virei ator e acabei também me tornando professor do Vocacional. Tudo começa dentro da Escola de Arte Dramática. Eu estava no último ano da Escola de Arte Dramática. Eu estava no ultimo ano da Escola de Arte Dramática em preparando para os exames públicos e na cadeira do Sábato Magaldi, era o meu último semestre, onde a gente estudava o teatro brasileiro e naquele semestre nós estávamos estudando a obra do Jorge Andrade, um autor muito importante na dramaturgia brasileira que tem o seu nome marcado na história do teatro brasileiro, ele era um ator que focava na sua obra toda a parte do interior de São Paulo, da região cafeeira, ele era de Barretos, ele era de uma família tradicional de fazendeiros da região cafeeira, tanto é que uma das obras mais importantes dele versava sobre a questão do café. Bom, nesse período desse semestre da cadeira de Sábato Magaldi a gente estudou muito e eu adorava a obra dele porque ele falava de temas que a minha família também estava ligada, que era na lavoura, no campo. A minha família era de Laranjal Paulista e por essas coisas acabei vindo para Santo André até, na época da industrialização maior e também do grande fracasso cafeeiro que estava tendo naquela época. Depois do teatro amador acabei entrando para Escola de Arte Dramática e neste semestre, depois de três anos de um estudo bastante forte eu acabei estudando essa obra do Jorge Andrade e no último dia de aula houve um grande debate sobre a sua obra. Eu, por ter estudado muito a obra do Jorge, o Sábato Magaldi me elegeu como o advogado do diabo da sua obra para eu apontar as possíveis falhas da sua dramaturgia. Bom, foi um debate acalorado, bacana e com a presença do Jorge Andrade. Ao término dessa aula, eu estou saindo da sala, era o meu último dia de aula teórica, o Jorge Andrade, ao sair me chama: “Petrin”. Ele tinha uma voz grave. Ele também tinha estudado na escola como ator e tinha uma voz empostada, bacana, bonita, ele era uma figura bacana, ele tinha uma piteira, uma coisa elegante que ele tinha herdado da sua família de Barretos. Aí eu pensei na hora – Nossa! Agora ele vai fazer alguma crítica às coisas que eu disse da obra dele. Mas foi o contrário, ele me falou: “Olha, eu queria te convidar para você ser professor da Escola, do Serviço de Ensino Vocacional”. E eu fiquei espantado. Eu nunca podia imaginar. Esperar um convite àquela altura da minha vida. E eu falei assim: Eu dar aula? Mas dar aula de quê? “Dar aula de teatro. Você terminou o curso, eu percebi por essa aula que você tem uma certa liderança com o seu grupo, você se mostrou bastante arguto a analisar a minha obra. Então, eu estou vendo que você tem qualidades para se tornar um professor”. E eu falei: - Mas eu não sei dar. Eu não tenho a mínima noção. E ele falou: - “Você terá todas as noções. A gente vai dar a você todas as noções de como dar aula”. Eu, na época, na minha fase de estudante da Escola de Arte Dramática, eu era desenhista industrial. Eu trabalhava em uma empresa, eu tinha muito prestígio nessa empresa como projetista, desenhista. Eu ganhava muito bem e nunca imaginava sair dela. É claro que depois que você participa da Escola de Arte Dramática o mundo se divide na sua vida, você é antes uma pessoa, entra na escola, sai outra pessoa completamente diferente, olhando o mundo de uma forma diferente, você vendo a vida de outra maneira. E, na verdade depois de eu me formar na escola e me formei muito bem, eu não queria mais ser um desenhista. Eu queria ser ator. Mas, para isso tinha um processo longo, demorado até você se encaixar nessa profissão. Aí eu falei para o Jorge – Você precisa me dar um tempo para pensar sobre isso e tal. Aí ele me deu o cartão dele e falou: “Quando você decidir você me telefona. Estou esperando você para ser o meu professor lá”. Bom, eu era casado, cheguei em casa, contei para a minha mulher. – Olha, está acontecendo isso assim, assim. O que você acha? “Não sei o que. Vamos ver e tal”. Acabei aceitando porque o salário que eu ia receber no Vocacional seria um pouco mais até do que eu ganhava como desenhista projetista. Acabei aceitando. A primeira escola em que fui designado para ir seria Rio Claro. Até estive em Rio Claro para conhecer a escola e tal, o processo todo. E ao mesmo tempo eu tinha um grande conflito porque dentro da própria escola eu já estava participando de um espetáculo que seria o início do Grupo Teatro da Cidade, em Santo André. A gente já estava ensaiando uma peça de Molière chamada Georges Dandin, dirigida pela Heleny Guariba. Então, eu já estava em conflito de ter que ir a Rio Claro e continuar com esse trabalho, esse processo que estava se iniciando desse espetáculo, que era o que, na verdade, eu queria. Ser professor não fazia parte do meu projeto de vida. Mas, para a minha surpresa nesse interim eu fui chamado pelo Jorge dizendo: “Não. Você não vai mais para Rio Claro, você vai para São Caetano do Sul, como você mora em Santo André fica mais fácil. Nós estamos abrindo uma unidade em São Caetano, na Vila Santa Maria”. Então aí tudo ficou mais fácil para mim. Eu pude continuar os meus ensaios e o meu projeto de ator com a peça e ao mesmo tempo eu poderia participar dessa experiência do Vocacional.

Eu me lembro muito bem que aqui na Vila Santa Maria era um colégio enorme. E outra coincidência dessa mesma época, desse mesmo período, estava se formando aqui em São Caetano a Fundação as Artes de São Caetano que ocupava uma das salas ou algumas salas ao lado do Vocacional. Então, dirigida, essa Fundação das Artes, pelo Milton Andrade. Então, ao mesmo tempo em que nascia a Fundação das Artes, no mesmo prédio, só que em outra ala, nascia o Vocacional. Bom, e aí, antes de tudo isso eu passei três meses sendo preparado para dar aula. Aí a minha preparação foi na Avenida Portugal, na sede do Vocacional.

Pergunta:

Em São Paulo?

Resposta:

É. Em São Paulo. Então lá eu participei do processo de qual era a orientação que a gente tinha. Então, eu quero esclarecer que dar aula de teatro para aquela garotada não era para que eles se transformassem em atores. O objetivo da área de teatro não tinha nada a ver com formação de ator, absolutamente. Mas, utilizar das técnicas de teatro para você auxiliar, ter mais uma ferramenta para que os alunos pudessem aprender todas as outras áreas, Português, Geografia, História, enfim, tudo, através do teatro. Então era essa o objetivo da área de teatro. E foi muito interessante porque esse aprendizado meu era uma nova descoberta. Eu me lembro que eu tinha uma orientadora, a Alerta, que me orientava de que maneira eu deveria dirigir as aulas. O curso era criado por bimestre. O bimestre tinha um tema, esse tema era desenvolvido por todas as áreas desse tema e uma outra área fazia a síntese do bimestre. E, para a minha surpresa esse primeiro bimestre de aula, o estudo era a família. Então, como que se desenvolvia isso? Tinha uma pesquisa de campo muito interessante, levar os alunos a conhecer a comunidade. Sair com os alunos de dentro da sala de aula, visitar as famílias. E eu, como professor da minha área eu também levei os meus alunos para conhecer as famílias da região. Então, como que era dividido? Tinha a família pobre, a família classe média baixa, classe média alta e uma provável família mais rica, vamos dizer assim. E a gente visitava as casas, dos alunos, chamava atenção antes para ver o que eles poderiam notar nessas casas. Colhendo esse material todo, levamos para dentro da sala de aula. Eu divida os alunos em vários grupos e cada grupo estudou uma família, um grupo estudou a família pobre, o outro de classe média, o outro de classe média alta, mais rica e tal. E o que era esse trabalho? Era criar uma pequena cena em que focava essa família. Esse processo durou dois meses do bimestre com a família. Bom, aí a minha outra surpresa foi que eu fui convocado para fazer a síntese do bimestre. Então imagine eu de repente no meio de todos aqueles professores e tal. A minha classe, a minha turma ia fazer a síntese. Bom, eu preparei os alunos para cada um fazer a sua participação e nesse dia foi uma coisa emocionante porque a gente conseguiu traduzir, com essa técnica do teatro a gente conseguiu traduzir o que era a família de São Caetano do Sul porque as apresentações de cada tipo de família tinha tudo que nem nos livros teriam do que eles observavam. O pai que era mais bravo, a mãe mais bondosa, o filho mais rebelde. Então, todos os problemas da família apareciam naquela representação. E foi um tremendo de um sucesso porque todas as outras áreas beberam nessa fonte, todos os alunos aprenderam como se constituía a família da sua área. E foi uma experiência muito interessante. Mas, a Escola Vocacional era um problema muito sério porque na época tinha grandes passeatas contra a Secretaria de Educação de reivindicações dos professores de todo o Estado. Então, a participação da Escola Vocacional era muito forte também nesse processo, eles participavam, a gente participava muito dessas reuniões que se faziam, das passeatas. Eu me lembro que eu e todos os professores participamos de uma passeata enorme em São Paulo.


Pergunta:

Isso no AI-5? Nessa época já estávamos no AI-5?


Resposta:

Exatamente. Interessante que as passeatas eram preparadas, a gente não sabia exatamente – Vai acontecer em tal lugar. Então, a gente se distribuía na cidade, nós professores, cada um tinha o seu grupo e na cidade a recebia a informação de onde sairia à passeata. Então, eu me lembro perfeitamente que eu e mais vários professores a gente ia em vários pontos da cidade para começar essa passeata.


Pergunta:

Existia algum grupo politico, alguma orientação, as pessoas participavam de algum grupo organizado?

Resposta:

Não. Nem um.

Pergunta:

Não tinha nenhuma militância?

Resposta:

Não. O que havia de fato no grupo de professores eram professores absolutamente conscientes da situação. Eram professores politizados. Isso desde a raiz do Vocacional foi assim e isso tudo devido à maneira como era feito processo de ensino, que era comandado pela Maria Nilde Mascellani, que tinha sido presa, torturada e até aconteceu que o Jorge Andrade escreveu uma peça chamada A Freira; não. Não me lembro exatamente o nome, mas que o personagem principal era a Maria Nilde em que ela mostrava que ela era torturada. Então os professores eram muito politizados, vamos dizer assim. Tinham todos uma formação politica. Não havia nenhum tipo de reação contrária àquele movimento. Então essa passeata da qual nós participamos foi muito forte. Eu me lembro muito, na Avenida São João, vários lideres fazendo discurso em cima de carro e nós jogando bolinha de gude para os cavalarianos caírem do cavalo. E eu me lembro nessa época que a polícia acabou correndo do nosso grupo e a minha mulher trabalhava ali próximo, na Brigadeiro Tobias, no escritório, eu e mais alguns alunos corremos para o escritório dela para nos escondermos lá. Foi muito forte tudo isso. Bom, essa é a minha experiência na escola. Era muito legal você participar com os outros professores. Eu me lembro que a cantina da escola era administrada pelos alunos, os alunos que compravam o material para ser revendido na escola, eles mesmos faziam os balancetes, viam o lucro, o prejuízo, a melhoria da qualidade do que se vendia. Então tudo isso era feito em aula, então o aluno tinha prática daquilo que eles estavam aprendendo. Um dos fatos, para curiosidade, eu tive um problema com um aluno. Eu tentava ensinar todos com a mesma atenção, mas tinha um aluno que eu não conseguia me identificar com ele. Ele não aceitava as minhas aulas. Eu sempre tinha um atrito com ele e ele com os outros alunos. Aí a professora Arlete entra em cena e vai investigar o porquê esse aluno era um rebelde na classe. Ela vai lá descobrir com entrevistas com a família, descobre que o pai desse aluno tinha uma aparência física igual a minha e que era um bêbado, bebia muito, maltratava a família e maltratava ele como aluno e esse aluno se identificava comigo como se eu fosse o pai dele, que a minha ação como professor era igual ao pai. Mas, depois disso tudo, da ação da professora, da orientadora social tudo ficou melhor porque aí eu pude me aproximar melhor desse aluno. Então, eu só estou dizendo isso porque nada era separado. Tudo formava um conjunto. A escola era todo um conjunto. E o aluno entrava na escola às 8hs da manhã e saía às 5hs da tarde. Tinha lá o refeitório onde se processava a comida, os próprios alunos participavam da merenda, do cardápio, então tudo era muito integrado, era uma forma fantástica que o governo acabou perdendo essa oportunidade de ter no ensino. Hoje se fala tanto em melhoria da educação e esse processo já vem lá desde 1968 e a coisa cada vez se deteriora mais, cada vez o processo é cada vez pior no nível da educação, os alunos não sabem ler, não sabe Matemática, a gente sabe pelas estatísticas que a gente ouve aí. E o Brasil perdeu com esse conjunto do Serviço do Ensino Vocacional um grande momento de transformar o nosso país em um país realmente educado, de ter o verdadeiro nome de pátria educativa, coisa que hoje não tem. Por que isso aconteceu? Porque de repente a ditadura militar achou que o Serviço de Ensino Vocacional era um antro de comunistas porque a gente contestava. O princípio básico do aluno na classe era ter uma atitude de análise crítica. O aluno quando perguntava ele perguntava de uma forma para analisar e uma forma crítica. O aluno nunca aceitava o que o professor dizia sem uma contestação, sem saber o porquê. O porque e a dúvida era o que fazia com que as coisas acontecessem. E isso também acontecia com os professores, a gente questionava tudo. Então foi aí que a ditadura militar fez com que tachasse o Vocacional como um antro de comunista e fechou a escola, fechou o Vocacional.

Pergunta:

No dia 12 de dezembro de 69 aconteceu aquele operação orquestrada que todos os Vocacionais foram invadidos pela polícia e pelo Exército. O senhor se lembra de alguma coisa desse dia, como que foi, como que foi depois não dia seguinte, como que as coisas aconteceram?

Resposta:

Eu não tenho essa recordação porque eu não participei. Eu não estaria a escola. Mas eu só sei que no dia seguinte fomos todos chamados na Avenida Portugal com uma reunião com a Maria Nilde Mascellani onde ela nos comunicou o fim do Vocacional. Eu me lembro que foi algo muito triste.

Pergunta:

O senhor continuou na escola depois disso ou não?

Resposta:

Não. Eu me lembro daquela figura singela, magra, branca da Maria Nilde comunicando isso e nesse momento, para ela pode dizer aquilo que ia acontecer, lágrimas saíam dos olhos dela. Foi um momento muito terrível. E a gente saiu daquela classe, daquela sala. Todos. Absolutamente todos desempregados. Ninguém mais... Não me lembro se tinha algum professor concursado que tinha direito ainda. Os professores profissionais mesmo. Eu era contratado pela CLT. Eu não fiz nenhum concurso para entrar naquele corpo de docentes. Entende? Então eu só assinei a minha demissão e pronto. Eu fui mandado embora. Não continuei. Claro que outros alunos que vieram, inclusive, de outras cidades do interior para participar desse projeto, provavelmente voltaram para a sua cidade e lá continuaram a suas carreiras, mas já dentro de uma escola tradicional, nada comparado ao Vocacional, nada absolutamente. E na época também tinha o Colégio de Aplicação que seguia uma filosofia mais ou menos parecida com o Vocacional, que também acabou destituído. E eu tenho outros professores atores que participaram como professores em outras unidades do Vocacional. Eu quero lembrar aqui do Luís Carlos Arutin, que já é falecido, mas se transformou em um grande de ator, de muito prestígio no Brasil, que também era professor no Vocacional e a gente se viu completamente desempregado. E o meu caso, por exemplo, porque eu acabei deixando a minha profissão de desenhista para trabalhar no Vocacional. Claro que depois de me formar pela Escola de Arte Dramática eu não queria mais ser desenhista. Eu queria ser ator. Aí surgiu essa possibilidade da escola, de dar aula, mas aí eu também estava apaixonado por aquilo, eu também tinha comprado aquela ideia, eu também admirava a Maria Nilde Mascellani. Então, foi um baque na minha vida e na vida de todos aqueles professores que estavam apostando tudo naquele estilo de ensino. E Maria Nilde, depois de muito tempo, era considerada uma mulher fantástica, que tinha feito essa proposta. Com relação à Maria Nilde eu me lembro que depois de algum tempo eu fui fazia um espetáculo, eu viajei com esse espetáculo por algumas cidades do interior, patrocinado pela Secretaria de Cultura de São Paulo e eu fui fazer o espetáculo em Americana. Eu nem sabia que Americana era a cidade da Maria Nilde e que ela tinha sido secretaria de educação da cidade de Americana. Bom, o fato que aconteceu é qu9e nós chegamos com o cenário no teatro para montar o espetáculo para a noite. Dei algumas entrevistas na rádio local sobre o espetáculo e aí fomos almoçar. Quem nos acompanhava era um representante da Secretaria de Cultura de São Paulo e chegando lá em Americana tivemos o contato com o representante da Secretaria de Educação da cidade, que nos acolheu, que nos levou ao restaurante para almoçar e tal. E durante esse almoço esse representante da cidade começou falar da prefeitura local que estava patrocinando aquele espetáculo naquela cidade, fazendo uma apologia do prefeitura da cidade e a gente não gostava muito disso, a gente queria era fazer um espetáculo, bater papo com o público local. E aí nesse discurso dele durante essa hora do almoço ele falou: “Porque nesta cidade há pouco tempo tinha um monte de comunistas que comandavam a educação e a cultura na cidade e a maior expoente disto era essa tal de Maria Nilde Mascellani que nós banimos daqui da cidade”. Quando ele falou isso eu virei para o representante da Secretaria de Cultura de São Paulo e falei: - Olha, eu vou avisar primeiro você que não vai ter mais espetáculo nessa cidade. Eu vou mandar os meus técnicos recolherem todo o cenário e a gente não vai mais fazer espetáculo. Você pode comunicar isso a esse rapaz que está falando tudo isso. E isso foi feito. E ele falou: “Mas Petrin você é pago para fazer o espetáculo”. Então você fala a quem de direito que eu não quero ser pago para fazer espetáculo nessa cidade com essa história. Eu quero preservar a memória da Maria Nilde Mascellani, Eu não admitir que um burocrata fique falando essas coisas. Então foi uma pequena homenagem que eu fiz àquela mulher que a gente devia tanto e uma mulher fantástica, uma mulher inteligente, que só via o bem para a educação, para criar um mundo novo para o Brasil e essa ditadura militar acabou fechando todas essas possibilidades e ainda colocou na prisão essa mulher, assim como essa ditadura militar também acabou assassinando a minha primeira diretora de teatro que eu fiz, George Dandin, que era dirigido pela Heleny Guariba, que foi exatamente nessa mesma época em que eu participei do Vocacional e participei da Fundação das Artes e fazia esse espetáculo, essa minha primeira diretora chamada Heleny Guariba um ano depois foi presa e assassinada em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Então, são essas coisas da minha carreira, inesquecíveis, essas perdas de pessoas tão importantes que poderiam contribuir de uma forma maravilhosa para esse país não ser essa porcaria que a gente está vivendo hoje.

Então esse meu depoimento vai ficar aí gravado nos anais. Fica esse meu protesto contra essas perdas terríveis que a gente passou. É isso.

Pergunta:

Obrigada.




Transcrição do Depoimento Antonio Petrin gravado em 29/07/2003

 Depoimento de Antônio Aracílio Petrin, 65 anos

Universidade de São Caetano do Sul, 29 de julho de 2003.

Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC 

Entrevistadores: Vilma Lemos e Daniela Macedo da Silva.

Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato 

Pergunta: Senhor Petrin, diga local de nascimento, família, relacionamento com os pais. Conta um pouquinho do senhor para a gente conhecer.

Resposta:

Eu nasci na cidade de Laranjal Paulista, bem próximo daqui do Estado de São Paulo, da capital. Vim para Santo André com 2 anos de vida, os meus pais eram lavradores, então, a crise do café em 1940 era muito grande, meu pai fugiu para a cidade que começava a sua industrialização. Foi um momento de êxodo grande da região cafeeira por causa da guerra, não se vendia muito café, muitos plantadores de café entraram em decadência total e meu pai veio em busca de uma empresa, de uma indústria que pudesse dar trabalho a ele, e a gente acabou vindo para Santo André. Eu tenho mais um irmão que nasceu praticamente no período da viagem e aí ficamos em Santo André durante muitos anos.

Pergunta: Como foi a infância, as brincadeiras, lazer, escola?

Resposta:

Eu devo dizer que a infância era muito rica, mas muito pobre. Eu morava em um bairro aqui de Santo André chamado Parque das Nações, que na época nem luz elétrica tinha. Esse período foi um período bastante difícil porque era uma adaptação dos meus pais para esse lugar industrial. Meu pai logo arrumou um emprego evidentemente, a gente morava em uma casinha de aluguel, eram ruas sem asfalto, sem luz elétrica e aquela vida muito simples, mas muito rica nas relações humanas, porque as pessoas se davam muito bem, se ajudavam muito, a vizinhança, não havia violência, e nesse bairro nós continuamos praticamente. Meus pais ficaram até a morte nesse mesmo lugar, nessa mesma rua. A diversão da gente na verdade era muito precária. Como não tinha luz elétrica, então a gente tentava, brincava na rua, até que os padres italianos que eram da ordem franciscana se estabeleceram no bairro e deram grande impulso para atrair o maior número possível de pessoas para a igreja evidentemente. Então eles trouxeram grandes novidades em termos de lazer, tipos de jogos de salão, essas brincadeiras, eles promoviam pequenas exibições de cinema, cinema mudo. Era precário, mas tinha o cinema, e eles começaram a fazer também teatrinho, depois eles mesmos começaram a construir uma igreja, perto dessa onde eles se estabeleceram, igreja essa em que eu cheguei até a ser coroinha. A diversão da gente era muito grande dentro da igreja, a atração maior era a igreja. O bairro inteiro era em volta da igreja e desses padres italianos que tinham uma preocupação em dar lazer, diversão e um lazer e uma diversão bastante rica em ensinamentos, essa coisa toda, e acabou traçando um caráter naquelas pessoas assim como eu.

Pergunta: E isso se prolongou até a adolescência?

Resposta:

Sim. O bairro, a partir daí, evidentemente começa a criar uma vida melhor, começa a se desenvolver, as empresas, as indústrias começam a se estabelecer em maior número em toda a região, quer dizer, mais pessoas começam, mais famílias começam a chegar. A partir de um determinado momento passa a ter a luz elétrica, que nessa época não existia, mas o bairro começou a progredir, começa a vir luz elétrica, enfim tudo começa, a igreja que os padres começam a construir já ganha uma dimensão maior, a gente já começa a entender um pouco melhor a vida através desses padres que ali se aportaram. A maior diversão que a gente tinha na verdade no bairro era jogar futebol, tinha campos à vontade. Hoje parece que a maior dificuldade da garotada é encontrar um campo de futebol para jogar, então isso é o processo da industrialização que vai tomando conta. Enfim essa era a minha infância até a adolescência.

Pergunta: Década de 50?

Resposta:

Na verdade, eu chego em 1940, com 2 anos, quer dizer que em 1950 eu já tinha 12 anos. Eu nunca me esqueço, porque ainda em 1950 não tinha luz elétrica no meu bairro, na minha rua. No outro lado do bairro já tinha e eu tinha um tio que morava nesse outro lugar e ele tinha luz elétrica. Eu me lembro que eu e meu pai fomos na casa desse meu tio, nós acabamos nos encontrando no meio do caminho e uma coisa impressionante, uma coisa que nunca mais eu esqueci, que foi ele dando a informação de que o Brasil tinha perdido a Copa do Mundo de 1950. Essa notícia chegou entre a minha casa e a casa do meu tio, na metade do caminho a gente ouviu essa notícia. Então, imaginar que você não tinha uma luz elétrica e que havia uma Copa do Mundo acontecendo, e que a gente acabou perdendo essa Copa e a gente ficou sabendo, então quer dizer, isso é um fato bastante interessante, mas eu acho que ainda demorou mais uns cinco anos, aí é que chegou a luz elétrica.

Pergunta: Descreva um pouco mais a configuração do bairro, as transformações.

Resposta:

O Parque das Nações é um bairro que foi dividido em duas partes: a primeira, mais antiga, que a gente era considerado para lá da linha, que tinha a cidade de Santo André, tinha uma estrada de ferro que ainda tem e esse bairro era depois dessa linha, depois do lugar nobre da cidade era um bairro que seria hoje um lugar bastante ermo, não tinha luz elétrica, só que desse bairro para cá da linha já tinha uma parte mais antiga. Nós estávamos morando na parte mais nova, que era o início de começar a arruar. Eu me lembro que os donos das terras chamavam-se Peruche, eu me lembro ainda hoje, quando eu saía de casa com uma caderneta vermelha para pagar a mensalidade do terreno que meu pai tinha comprado dessa empresa chamada Peruche, quer dizer, ele tinha uma casinha perto de onde eu morava, eu ia lá todo mês fazer aquele pagamento, foi o primeiro terreno que meu pai comprou, depois ele construiu uma casinha e ali ele morou o resto da vida dele, na rua Honduras, no Parque das Nações. Esse lugar tinha um bosque maravilhoso que era onde a gente fazia brincadeiras, se divertia nesse bosque. Eu me lembro que quando eu fiquei doente, eu peguei bronquite e o médico falava para mim: Você tem que todo dia de manhã passear no bosque, porque no bosque, com o ar puro, você vai melhorar. E de fato eu fazia isso diariamente, eu ia ao bosque passear para poder curar da minha bronquite.

Pergunta: Vamos falar um pouquinho de casamento, namoro.

Resposta:

Na verdade, tudo, como eu disse, girava em torno da igreja e evidentemente eu acabei conhecendo a minha mulher nesse lugar. Ela era Filha de Maria e eu ficava atrás das Filhas de Maria, uma era mais bonita que a outra, então nós todos ficávamos disputando com qual a gente ia namorar, e confesso que às vezes saía até briga por causa de algumas delas. Eu acabei namorando uma dessas Filhas de Maria com quem acabei me casando e também eu comecei a fazer um teatrinho amador dentro da igreja com ela. Eu conheci a minha mulher fazendo teatro amador da igreja ali no salão paroquial, tinha um teatrinho ali e a gente começou a ensaiar os primeiros passos. Eu gostava muito, já tinha tido uma experiência fazendo uma peça, eu ainda era nem adolescente, eu estava fazendo uma pecinha lá com a que dava aula de catecismo para a gente, então já tinha começado. Eu tinha um grande entusiasmo, e tinha jeito para aquilo, só que não era uma coisa contínua. A gente saía, ia para o futebol, depois voltava para o teatro da igreja, enfim, uma série de coisas que a gente fazia paralelamente, não havia uma preocupação: eu vou ser isso. A preocupação da gente, na época profissional, era querer ser mecânico de carro, mecânico, torneiro mecânico. Meu pai queria que eu fosse torneiro mecânico porque era a profissão que você podia ser empregado, que você podia sair da escola e entrar logo, ter um emprego, não era uma coisa, eu não tinha outra preocupação nem imaginava freqüentar uma universidade, uma faculdade, não. Isso era um sonho impossível, primeiro que na região absolutamente não tinha nenhuma e a distância para ir a São Paulo era infernal, era através do trem. Tinha que ser torneiro mecânico ou qualquer coisa ligada às empresas e indústrias da cidade, então a gente ia estudar. Eu inclusive estudei na Escola Industrial Júlio de Mesquita que na época dava aulas técnicas só que eu comecei a ter aptidões por desenho e acabei me tornando um profissional de desenho. Então, eu já tinha dentro de mim uma preocupação mais artística enfim, eu acabei me tornando um profissional de desenho e não fui o torneiro mecânico que meu pai queria que eu fosse. É evidente que no início, com 13 anos de idade, eu trabalhava em serralheria, ficava cortando ferro, fazendo janela enfim. Era um serviço duríssimo e eu odiava tudo aquilo. Na verdade, eu queria outra coisa para mim, para a minha vida. Mas como você pode querer ser outra coisa em um bairro pobre, absolutamente industrial, sem nenhuma perspectiva, sem você ter nenhuma formação, porque não tinha luz elétrica, então o rádio era quase que uma coisa difícil de você ter, um ou outro tinha aqueles rádios de pilha que mal funcionavam. Aliás eu sou um ator hoje, eu fico sempre me perguntando: Como me tornei ator, com esse tipo de formação? Hoje não, hoje o jovem tem meios de comunicação muito fáceis, a televisão, o rádio, a internet, a computação, enfim, ele está sempre sendo informado, as escolas brotam em cada esquina hoje, porque a escola virou um grande comércio. Hoje, além de uma preocupação de ensino, ela virou um grande comércio, então hoje tem escola para tudo quanto é tipo de coisa. Hoje é mais simples: eu quero ser ator, então o cara já vai, agora na minha época isso era uma coisa que não passava pela minha cabeça. Quando eu me tornei ator profissional foi um problema na família, foi um alvoroço. Como eu sendo um desenhista já muito bom, ganhava muitíssimo bem, de repente eu paro e me aventuro em uma outra profissão? Mas é porque já vinha isso da minha infância daquele teatrinho que tinha na igreja, aquele acompanhamento, depois as peças sacras que a gente fazia, começava a fazer aquelas pecinhas de situação, coisas que a gente ia aprendendo da simplicidade e vendo muitos outros teatrinhos que se fazia, que vinha de São Paulo para lá, foi isso que me alertou. Essa é, mais ou menos, a minha vida na cidade.

Pergunta: Vamos explorar então a questão do amor ao teatro. Como criou esse pulo, como era o desenhista na profissão e como que ele pulou para o teatro? Vamos esmiuçar isso aí.

Resposta:

Então vamos voltar novamente a Santo André. Santo André então tem a estrada de ferro que divide a cidade, eu morava desse lado aqui, dificilmente na minha adolescência, para vocês verem o grau de dificuldade, eu tinha até dificuldade para passar para o outro lado da cidade, quer dizer, ir para o centro da cidade era somente para as pessoas adultas, para as pessoas que iam trabalhar. A gente não tinha essa facilidade de locomoção. Então, passei toda a minha infância e grande parte da minha adolescência dentro desse bairro. E ali eu peguei a coisa do teatro dentro da igreja. Quando já estava bem adulto, 18 anos de idade, eu já tinha uma prática maior desse teatro que se fazia dentro da igreja, eu me lembro que então se começaram a fazer teatro no centro de Santo André, que era o Teatro de Alumínio. Esse Teatro de Alumínio era dirigido pelo senhor Antônio Chiarelli e uma vez eu vim assistir ao espetáculo, que foi a primeira vez que eu vi Cacilda Becker representar. A peça chamava-se "Moeda corrente do país". Quando assisti àquele espetáculo no Teatro de Alumínio eu falei: É isso que eu quero ser. Eu me apaixonei por aquilo, eu me via no palco fazendo aquela peça junto. Eu não tinha dimensão de quem era Cacilda Becker, eu sabia que aquilo era um teatro maravilhoso e que era aquilo que eu queria. Passando mais um tempo, foi montado um espetáculo em que eles precisavam de outros atores, então eles abriram um teste para vários atores, amadores evidentemente, para fazer um teste para montar um espetáculo, e eu simplesmente fui lá, cara-de-pau. Antes, tem um dado muito interessante que também se criou: começou uma rádio em Santo André, chamada Rádio Clube de Santo André, nunca me esqueço, ZYR73 Rádio Clube de Santo André. Eles fizeram lá um concurso para locutores, e eu achava que também podia ser locutor. Por que não? Tudo que podia ser de comunicação eu achava que podia fazer. Essa rádio se estabeleceu na Rua Coronel Oliveira Lima, era um prediozinho, uma escadaria, e eu cheguei lá para me inscrever para o teste. Eu sei que tinha assim de gente, eu preenchi a ficha e nunca fui chamado para nada, e essa é minha grande frustração, que nunca fui um locutor de rádio. Mas aí teve esse teste no Teatro de Alumínio, com o diretor chamado Ademar Guerra, aí eu fui fazer esse teste e acabei, eu e a minha mulher, acabamos entrando para esse elenco da SCASA. Claro que eu me sentia como se eu estivesse ingressando na Broadway, tal era o nível que já estava estabelecendo para mim, mas eu era um trabalhador já, eu trabalhava na indústria, como desenhista, então eu tinha as minhas dificuldades. Mas enfim acabei sendo contratado. Eu falo como se fosse hoje, convidado para fazer parte daquele elenco. Depois, terminada essa peça, um ano depois, que foi um sucesso extraordinário, uma coisa fora do comum o sucesso que foi essa peça, o diretor, que era um diretor profissional de São Paulo, nos aconselhou a entrar para a Escola de Arte Dramática. Então, eu fui para a Escola de Arte Dramática, eu já como desenhista formado, já trabalhando, ganhando meu salário, muito bem de vida, um belíssimo salário, acabei entrando para a escola de arte dramática. Depois de três ou quatro anos de Escola de Arte Dramática, era impossível continuar a ser desenhista, ter aquela profissão, porque o mundo se abriu à minha frente, então eu queria ser um outro profissional, eu queria ser ator. Eu fiquei quatro anos dentro de uma escola, aí eu achava que eu estava pronto para ser um ator, e aí acabei virando ator por causa disso. Tive pequenas influências e acabei, um garoto do Parque das Nações, de Santo André, virei ator, coisa que depois, acho que o percentual, eu acho que sou um do Parque das Nações que virou ator. Eu tenho agora um sobrinho, que também nasceu no Parque das Nações, mas que hoje está nos Estados Unidos e lá provavelmente vá fazer uma carreira de ator. Mas são coisas que a vida não mostra claramente lá na frente o que vai acontecer com você. Eu faço uma peça agora que diz uma frase maravilhosa: Nunca se dê por concluída a própria existência antes do último suspiro. Quer dizer, não importa o tempo que você tem, se você é novo, se você tem meia-idade ou se você é um velho, tudo na vida pode te acontecer, só não vai acontecer nunca mais nada quando você der o último suspiro. Até então, a vida pode ser transformada, pode ser mudada. Eu sou o maior exemplo, e tenho isso como uma certeza absoluta, e até gosto de dizer isso e deixar gravado isso, porque é muito importante que as pessoas tenham sempre isso na cabeça, nunca dê por concluída a própria existência antes do último suspiro

Pergunta: E a relação familiar quando da entrada para o teatro: é isto mesmo que eu quero, eu vou lutar por isso. Como foi?

Resposta:

Na época eu já estava casado, casei muito jovem, que era também um pouco o costume da época, porque, na verdade, a gente vivia tão precariamente tudo, que a gente se juntava, porque dois iriam conseguir viver melhor, e de fato para mim aconteceu assim. Eu me casei e a minha vida dali para frente, ganhou uma nova dimensão. Eu e minha mulher sempre trabalhamos muito, agitamos muito, enfim, foi bom, não tenho essa de me casei muito cedo, não tem essa mágoa de ter casado cedo, pelo contrário, para mim foi ótimo. Quando eu terminei a Escola de Arte Dramática, eu era um profissional de desenho e eu me lembro, quando foi o meu último dia, das coincidências da vida. Eu estava fazendo, na área, na cadeira de história do teatro brasileiro com o professor Sábato Magaldi, um estudo muito grande sobre o autor Jorge Andrade. Eu estou dando todos esses detalhes para explicar o que vai acontecer. Esse autor Jorge Andrade era um autor cuja temática mais forte dele era tudo aquilo que se relacionava à lavoura. Ele gostava, ele colocava em cena, toda a temática dele era rural, e eu, claro, por afinidade familiar, adorava as peças dele e então eu estudei durante todo o semestre que era o último da escola, estudei com muita profundidade a obra de Jorge Andrade. No final do ano, o Sábato Magaldi, para concluir o trabalho, me convidou para ser o advogado do diabo da sua obra em um grande debate que iria haver sobre todo o trabalho do Jorge, mas eu argumentei: Mas eu conheço tão bem a obra, admiro tanto a obra e você me coloca como advogado do diabo? Ele falou: Exatamente por isso, porque você conhece bem a obra e então você vai ter como contestar coisas da obra dele. E assim foi feito, só que no dia dessa grande apresentação desse trabalho, estava presente o Jorge Andrade, e ficou meio difícil você contestar, ainda mais com ele presente, mas enfim, eu tinha que cumprir o papel que me foi designado pelo professor. Foi uma noite brilhante porque se discutiu muito sobre a obra dele, todos ficaram maravilhados com os trabalhos apresentados, porque era um trabalho todo teórico, não tinha nada prático. Quando terminou esta aula, era minha última aula na escola, nunca mais na parte teórica eu iria voltar para aquela sala, eu me lembro que eu peguei o meu material, estou saindo, ouço a voz do Jorge Andrade, ele tinha uma voz grave: Petrin, por favor. Eu parei, e falei: Ai meu Deus! Agora ele vai querer colocar em discussão pontos que eu levantei da obra dele. Ele me chamou e falou assim: Olha, queria te agradecer pelo trabalho que vocês tiveram com a minha obra e queria te fazer um convite. Eu sou supervisor da área de teatro da Escola Vocacional e queria convidar você a dar aula no Vocacional, de teatro. Eu fiquei perplexo diante desse convite, e falei: Olha, você vai me desculpar mais eu nunca dei aula na minha vida, eu não tenho a mínima idéia do que é juntar adolescentes na minha frente e eu dar aula de teatro, de um curso que estou terminando agora. Não se preocupe com isso, que nós faremos um trabalho preparatório para você durante três meses e aí você passa a ser um dos professores da área. Está bom, então. Ele falou: Toma aqui meu telefone, você me liga que nós vamos detalhar melhor esse convite. Eu saí muito feliz porque eu acabei tendo um convite de trabalho, apesar de eu ser um desenhista e não tinha nenhuma intenção de ser um ator profissional. Eu era desenhista e tinha me formado na escola, claro que a vontade era querer ser ator, mas eu imaginava a dificuldade que eu iria ter para poder ter uma carreira. Esse convite mexeu comigo, aí fui investigar melhor e eu acabei descobrindo que o que eles me pagariam na Escola Vocacional era maior que o meu salário de desenhista, porque lá, como professor, você chegava às oito horas da manhã e saía às cinco horas da tarde porque era período integral na escola, tanto para os alunos como para os professores. Quer dizer, era um sistema de ensino que estava se abrindo na época aqui em São Paulo, que era a proposta de ensino que o governo tentava colocar. Aí, diante de salários iguais, eu acabei aceitando, mesmo porque eu não suportava mais a idéia de ser um desenhista mecânico. Quando eu me tornei esse, eu fui para a escola, até a escola da qual eu fui designado foi uma unidade aqui em São Caetano, que foi aqui na Vila Santa Maria, que começou essa unidade da Escola Vocacional. Só que nós vivíamos em um período político muito grande em 1970, 69. Eu me formei em 67, em 68 a ditadura se estabeleceu. Depois de vários conflitos, os professores da Escola Vocacional lideraram movimentos em favor de professores e alunos para melhoria de ensino e essa coisa toda, o governo considerou o Vocacional um antro de comunistas, e acabou com o Vocacional. Quer dizer, eu que fui empregado durante seis meses, no final do ano me vi sem emprego, porque eles extinguiram o Vocacional e como nós não éramos professores concursados, nós éramos contratados pela CLT, acabamos sem emprego, e ficamos no olho da rua. E aí eu não tinha outra saída a não ser fazer teatro, me colocar como ator. Por um acaso estava ensaiando uma peça no teatro profissional, quer dizer, terminavam as minhas aulas, e eu ia para o meu ensaio que era um espetáculo que eu estava fazendo no Teatro de Arena, em São Paulo, e aí eu cheguei para a minha mulher e falei: Olha é o seguinte: você segura a barra durante um tempo, eu dou um prazo de um ano, se eu conseguir no prazo de um ano fazer minha carreira, muito que bem, senão eu paro e volto a desenhar. Ela falou: Pode ir que eu seguro. A minha mãe, quando ouviu isso, que era nossa vizinha, xingou minha mulher de maluca, eu mais ainda, porque era uma aventura você querer ser um ator profissional depois de você já estar com sua carreira já bem adiantada. Então, foi isso que aconteceu, e graças a minha mulher que segurou o período todo, eu acabei vingando, vamos dizer assim, como ator, uma carreira que ainda é muito difícil, muito complicada, apesar de ser uma carreira muito bonita

Pergunta: O senhor falou um pouquinho nessa questão da ditadura em relação ao teatro. Conta para a gente de lembranças, de reflexos diretos da ditadura, dos movimentos políticos, em relação a atores, teatro?

Resposta:

Eu vou ficar até amanhã cedo falando aqui, porque esse é um período tenebroso e terrível que eu não gostaria que ninguém mais passasse por um período desse, era um período onde os atores transformaram nosso teatro numa trincheira em favor da democracia e da liberdade de expressão. Para nós atores o que restou foi uma..., o que veio foi uma censura diabólica sobre o nosso trabalho, e a gente ficava lutando e tentando enganar a censura com as nossas peças. O teatro começa a mudar um pouco de fisionomia, ele passa a ser o teatro da metáfora para tentar ludibriar, para a gente tentar colocar em cena os nossos textos e os nossos espetáculos e ainda fazendo uma dura crítica ao governo que estava ali oprimindo toda a sociedade brasileira. Claro que não era só a censura. A gente saía a campo para protestar contra uma série de iniciativas desse governo. A gente saía em passeatas, nós fazíamos protestos nas praças, isso tudo sempre era comandado, na maioria das vezes por atores e pelos estudantes; nós vivíamos juntos, tanto é que na época o teatro vivia lotado com os estudantes, os estudantes eram os nossos melhores espectadores, eles iam, eles eram o nosso grande público, e a gente tentava. Eu me lembro de um detalhe que eu quero ainda deixar claro aqui, é que na época que eu me formei na Escola de Arte Dramática e durante o período que lecionei no Vocacional, aqui em Santo André, eu e mais alguns colegas da escola de arte dramática, mais uma professora chamada Heleny Guariba, que foi assassinada pelo regime militar, dentro da escola ela era uma professora que tinha acabado de chegar da França, ela tinha estagiado e ela queria colocar umas idéias de transformar a cidade de Santo André em um teatro da periferia, um teatro distanciado do grande centro, um teatro popular onde ela pudesse, dentro de um repertório, trazer para este teatro um maior número de pessoas que tinham dificuldade de ir ao grande centro. Juntamente com ela e mais outros colegas nós fundamos o Grupo de Teatro da Cidade, o GTC que durante 12 anos trabalhou na região de Santo André com muito sucesso e com muito empenho, fazendo um teatro popular de primeiríssima qualidade. E isso também acabou coincidindo com a construção do Teatro Municipal de Santo André. O Teatro de Alumínio foi derrubado, acabou, então se construiu o complexo do Paço Municipal, onde tem um teatro maravilhoso. Juntamente com os colegas nós montamos esse grupo e trabalhamos durante 12 anos, sendo os dois primeiros anos com a Heleny Guariba, depois ela acabou desaparecendo e nós também tivemos problemas com a ditadura, porque a gente também sofreu algumas perseguições, fomos presos em uma oportunidade no DOPS, por causa dela, que tinha uma relação muito grande com alguns grupos da guerrilha, até que ela acabou desaparecendo e depois a gente ficou sabendo que ela tinha sido assassinada pela ditadura. E nós continuamos esse trabalho que ela tinha proposto. Um grupo quando se junta tem a duração de sete a dez anos, esse é o tempo que o grupo consegue se manter unido no trabalho. E o grupo acabou por si só e cada um seguiu a sua carreira individual que é o meu caso atual. Então, tudo isso são momentos que estão saindo de dentro do meu sentimento e colocando tudo isso sem uma ordem muito clara, e às vezes um pouco com a emoção atrapalhando um pouco.

Pergunta: Voltando ao Teatro de Alumínio, vocês tinham dificuldades quanto à montagem de cenário, figurino? Como era?

Resposta:

Isso que é. Esse momento de você trabalhar no teatro amador é muito legal porque você aprende de tudo. Por exemplo, como é a peça, que época é, se é uma peça atual cada um traz o seu terninho, o seu paletó, a sua camisa, a sua gravata, o seu sapato, cada um compõe o seu figurino sem nenhuma preocupação às vezes estética, é o que tem. Se for uma peça de época é claro que cada um do grupo acaba contribuindo com um dinheirinho e cria-se uma roupa de época e tal, mas na verdade a gente fazia peças atuais para não ter esse tipo de problema. O cenário era sempre o mesmo, aquele famoso gabinete que a gente ia lá e até pintava, a gente trabalhava na pintura, na iluminação. Eu me lembro que nesse teatro amador eu aprendi a fazer com que a luz pudesse acender lentamente e apagar lentamente, então eu aprendi essa técnica, que é um tubo refratário que você enche de água em uma extremidade, você coloca um pólo da luz e no outro pólo que vai com um peso que vai se aproximando um do outro, quer dizer, isso você faz, e essa água que tem aí dentro é salgada para criar uma corrente elétrica, quer dizer, a aproximação dos dois pólos você faz com que o refletor se acenda. Aprendi isso, e isso me quebrou muitos galhos. Mesmo no teatro profissional, quando se tinha dificuldade de você ter essa técnica mais apurada, a gente acabava usando essa técnica que eu aprendi no teatro. Então o teatro para mim, com o teatro amador, a caixa de um palco, como a gente chama não tem segredos, eu conheço tudo por causa dessa minha formação. Às vezes eu vejo atores que acabam de se formar chegando, eles têm uma dificuldade de entender um pouco como é uma caixa de teatro, então a gente está sempre explicando, porque eu também aprendi com os outros. Esse fazer do teatro, eu sou da época que a gente pegava o texto e copiava a fala da gente, e só a última linha, a deixa do outro, hoje isso é uma coisa impossível. Eu sou da época, ainda bem no princípio, que tinha o ponto que soprava as falas que você tinha que dizer. Mas isso a gente logo acabou abolindo porque é impossível você representar com alguém soprando a fala que você tem que dizer.

Pergunta: Para falar do teatro hoje, como é a vida profissional hoje, a vida em si hoje?

Resposta:

Alguns dizem assim: Você já é um ator consagrado. Mas eu acho que não exista essa coisa de falar assim: Eu sou um ator consagrado. Na verdade a batalha da gente no teatro, em um país como o nosso, onde todas as dificuldades culturais são cada vez maiores, nunca estamos assim tranqüilos. Estamos sempre esperando um convite da televisão, um convite para você fazer uma peça de teatro. Temos sempre uma dificuldade na continuidade do nosso trabalho. No caso, eu sou um ator que, na minha inquietação, eu nunca parei, então, hoje eu não espero ninguém, eu vou, eu mesmo produzo as minhas peças. Eu faço o teatro que eu quero fazer, eu falo do tema que eu quero fazer, eu tenho muita dificuldade em aceitar convites para fazer teatro, porque às vezes não é o tema que eu quero fazer, e teatro é uma atividade tão difícil, te dá muito trabalho, que se você não estiver feliz com aquilo que você vai representar, então é melhor não fazer, é melhor ficar em casa, vai fazer outra coisa. Mas o teatro tem que ser uma coisa que te dá muito prazer, porque a atividade, o dia-a-dia do teatro é complicado. A televisão, como você não tem nenhum domínio sobre a produção da televisão, quando eles te convidam para você fazer algumas bobagens que a gente costuma fazer na televisão, então você vai lá, ganha um bom dinheiro, você fica conhecido, todo mundo te pede autógrafo, aponta você na rua, só que isso é bom para a garotada. Eu sou um pouco isento dessas coisas. É claro que o ego sempre fala um pouco, é bom você ser convidado para dar uma entrevista, para pedir um autógrafo, quer dizer, é claro, isso faz parte, para mim, na minha idade, eu não tenho mais muito isso, isso não me entusiasma tanto. O que me entusiasma ainda hoje é ser um ator que ainda posso escolher outros personagens maravilhosos que eu quero fazer. Eu atualmente estou fazendo uma peça que se chama Um Merlin, que é uma peça maravilhosa, onde eu falo coisas nessa peça que me entusiasmam e espero que sempre eu estusiasme o público quando eu estiver representando, porque pega um personagem da literatura, um ícone que é o Merlin, transforma, passa para o dia de hoje, toda uma linguagem necessária para a gente ouvir, para a gente escutar, para a gente discutir, e fazer o personagem, a coisa mais enriquecedora para o autor é fazer personagens. Com a soma dos personagens que você faz ao longo da sua vida com cada um deles você aprende as relações humanas, você aprende com o canalha, com o carrasco, você aprende com o homem bom, você aprende com temas que às vezes a televisão não deve, não pode tratar, o teatro é que pode, então você aprende todos eles. Além do aprendizado que a gente tenta passar para o público, essa reflexão sobre as relações humanas antes de tudo é o ator que ganha, que conquista tudo isso. Eu me sinto privilegiado com tudo isso na minha vida, dentro da sociedade, que eu tenho uma formação que eu adquiri ao longo da minha vida e muito mesmo através dos personagens que eu fiz no teatro. Isso para mim é um bem que eu jamais saberia, adquiriria se não tivesse o teatro. Eu gostaria, seria um sonho que todos pudessem ter alguma experiência de teatro, para ver o quanto isso é gratificante. Como eu gostaria que os estudantes, a quantidade de estudantes que tem hoje, fossem mais ao teatro e aprendessem com o teatro muito mais, com certeza absoluta, do que aprendem em uma sala de aula. Digo isso com toda clareza, com toda prova de que isso é verdade. Eu acho que o teatro perde muito com a ausência dos estudantes na sala. A alegação de que o teatro é caro não convence porque a gente encontra tudo quanto é jeito, forma de ir ao teatro. Na minha época, na época da ditadura, os estudantes iam, em peso; tem um amigo meu que diz assim: Na segunda-feira se você não tivesse assistido a determinada peça, você não teria assunto dentro da escola para conversar, porque todos foram ao teatro durante o fim de semana. Enfim, se você não tivesse ido, você ficava sem assunto na sala de aula. Hoje ninguém, estudante nenhum vai ao teatro. É muito pouco. As pessoas vão para a balada, as pessoas vão à procura de uma coisa, de uma necessidade de uma vida que, às vezes, talvez decepcionado com a sociedade que está aí, mas se abandonarmos, não conseguiremos retomar uma melhoria na nossa vida. O Brasil precisa dessa melhora de qualidade do estudante, e o estudante não pode querer que apenas a escola lhe dê a formação necessária, ele tem que procurar outros meios, assim como tem a internet, como tem o cinema, tem que procurar o teatro. O teatro ainda é o lugar, o espaço necessário para a nossa formação.

Pergunta: Vive-se de teatro?

Resposta:

Eu vivi, e olha que eu tenho dois filhos, nunca tive outra profissão durante, desde o momento que deixei de ser desenhista, os meus filhos eram pequenininhos, cresceram, dei a melhor escola para eles, hoje eu tenho um filho que mora na Dinamarca, é arquiteto, pós-graduado, tenho uma filha formada em Letras, muito bem. Eu consegui fazer com que os meus filhos tivessem a melhor escola, a melhor formação, cada um que se casou, eu dei um apartamento. Tudo isso. Quer dizer, a alegação de que o teatro... O teatro, você precisa trabalhar, trabalhar e se você tiver talento, se você tiver vocação, você consegue. Então, é também uma outra coisa, a gente não consegue, mas hoje se consegue muito mais, porque hoje tem a televisão que dá muito emprego. Hoje eu moro em um lugar ótimo, moro em um lugar legal, tenho meu belíssimo apartamento, o resto da minha vida eu acho que vou estar tranqüilo. Claro, mas eu sempre estou inquieto com a minha profissão eu quero sempre fazer mais, até o dia que a minha memória não conseguir mais memorizar os textos, aí é outro problema, mas enquanto isso, enquanto tiver com a minha saúde, com a minha memória podendo exercitá-la, eu quero estar no teatro, porque esse é o meu espaço. O ator. Para terminar, a formação do ator é para o teatro, ele, o seu espaço-rei é o teatro, é o palco. Ele depois presta serviço para o cinema, presta serviço para a televisão. É uma bobagem muito grande dizer: Eu vou fazer um curso de ator para televisão. Isso é uma asneira absoluta, ninguém se prepara para ser ator para televisão ou para o cinema, se prepara para ser ator e aí você vai aprender a representar com muita facilidade, dois dias em frente a uma câmera, você aprende a representar para a câmera, um outro dia para o cinema você aprende, agora a grande dificuldade é representar no palco, onde o espaço é maior, onde a voz tem que ser maior, enfim, você usa todo o seu corpo, então a formação de um ator é para o teatro.

Pergunta: Para finalizar, o que o senhor gostaria de deixar registrado, com o seu depoimento, para os jovens e futuras gerações sobre a sua experiência de vida?

Resposta:

Esses tipos de conselho sempre soam de uma forma às vezes meio demagógica. Eu acho que eu não tenho uma fórmula, ninguém tem a fórmula: você jovem tem que fazer isso, tem que fazer aquilo. Eu acho que a única fórmula que o jovem tem que seguir é perseguir o seu sonho. Qual é o meu sonho? O meu sonho é ser um arquiteto, então ir atrás do sonho. É acreditar no sonho, acreditar completamente no sonho, até esse sonho ser realizado. O ser humano só não deve perder a possibilidade de sonhar. Se ele sonha, ele vai ser um homem feliz, ele vai encontrar o seu caminho e para isso não tem uma receita. Se tivesse uma receita, a gente escreveria um livrinho e venderia e ganharia muito dinheiro com essa receita, mas eu acho que a melhor receita é seguir o seu sonho.


Acervo Hipermídia de Memórias do ABC - Universidade de São Caetano do Sul